Sobre o desconto do valor do DPVAT nos casos de APP Morte Acidental

Artigo é de Eduardo Maciel Saraiva, advogado da CJosias & Ferrer Advogados Associados
Eduardo Maciel Saraiva

Desde a extinção do seguro obrigatório DPVAT, ocorrida no governo anterior, ainda em 2019, a Caixa Econômica Federal, atual gestora do seguro, tem limitado a abrangência dos seus pagamentos, sob a alegação de que não possui fundos para pagamento de sinistros ocorridos em períodos mais atuais.

Diante deste cenário, surgiu a seguinte dúvida: é viável o desconto do valor do DPVAT nas indenizações referentes à cobertura APP morte acidental?

Para melhor análise, deve-se ter em conta os seguintes fatores:

  1. O seguro DPVAT é o 1° (primeiro) risco e, assim, em tese, a indenização pela seguradora deveria ser suportada somente pelos valores que ultrapassem a indenização do DPVAT;
  2. Nos casos de morte, a indenização máxima é de R$ 13.500,00, valor este que a seguradora deduz da cobertura/indenização a ser paga aos beneficiários;
  3. Contudo, os beneficiários e corretores alegam que não estão recebendo tais valores do seguro DPVAT, pois a Caixa não está pagando administrativamente, face à alegada insuficiência de fundos;
  4. Como os terceiros/beneficiários não estão recebendo o seguro DPVAT, não concordam que a seguradora abata do pagamento da indenização referente ao APP morte acidental o valor correspondente.

Do seguro obrigatório DPVAT

Inicialmente, destaca-se que o seguro de danos pessoais causados por veículos automotivos, comumente chamado pela sigla DPVAT, se trata de um seguro nacional obrigatório, cuja criação se deu pela Lei 6.194/74, pago por todos os donos de veículos anualmente, como uma espécie de taxa.

O dinheiro arrecadado com a cobrança do seguro é destinado para as vítimas de acidentes de trânsito, independentemente do tipo de veículo e de quem foi a culpa, desde que ocorrido no território nacional. A indenização é destinada a estas vítimas por danos pessoais, nas seguintes situações: despesas médico-hospitalares, em caso de invalidez permanente e devido à morte provocada em um acidente.

Considerando os casos de indenização decorrente de morte provocada por acidente, não há grande mistério: a indenização é devida nos casos de falecimento da vítima decorrente de acidente de trânsito, sendo o valor máximo indenizado de R$ 13.500,00.

Nestes casos, os beneficiários são o(a) cônjuge ou companheiro(a) e/ou herdeiros legais da vítima, conforme disposto na Lei nº 10.406/2002 (Código Civil), sendo que o valor máximo da indenização por morte é compartilhado entre todos os beneficiários legais, sempre de acordo com a ordem da vocação hereditária prevista na norma civilista.

Trata-se, portanto, de um seguro que cobre um risco específico relacionado a uma responsabilidade social, com notável função coletiva, visando amenizar os efeitos de um evento danoso futuro e incerto por meio da previsão de uma indenização mínima garantida à vítima ou a seus herdeiros.

Em que pese possua a natureza de seguro obrigatório de responsabilidade civil, obedece às normas dos artigos 792 e 794 do Código Civil, que dispõem sobre seguro de pessoas, destacando que ela não é considerada herança, para todos os efeitos de direito, passando a integrar o patrimônio dos beneficiários quando configurado o evento morte em razão de acidente de trânsito.

A partir da promulgação da Lei 14.544/2023, a Caixa Econômica Federal passou a gerenciar o fundo do DPVAT, que até então ficava sob a administração da Seguradora Líder. Considerando a atuação dos últimos governos, que inicialmente estipularam o fim do pagamento do seguro obrigatório, a Caixa tem efetuado pagamentos de indenizações apenas de acidentes ocorridos no período de 01/01/2021 a 14/11/2023. Aponte-se que o atual governo, inicialmente, previa a criação de um novo seguro obrigatório, sob o nome SPVAT, através da Lei Complementar 207/2024. Todavia, a referida lei foi revogada pela Lei Complementar 211/2024, em 30/12/2024, após desistência do governo.

Da cobertura de acidentes pessoais a passageiros por morte acidental

Já a cobertura de acidentes pessoais a passageiros (APP) por morte acidental se trata de uma proteção oferecida dentro de uma apólice de seguro automóvel, que pode ser contratada junto ao seguro tradicional ou de forma independente. Ela se diferencia da indenização por morte prevista no seguro obrigatório DPVAT, na medida em que não possui o caráter social coletivo inerente ao seguro nacional obrigatório.

Aqui estamos falando de um seguro privado, cuja contratação se dá pela autonomia da vontade da parte contratante, mediante o pagamento de prêmio, que visa à contratação de uma cobertura específica para proteção dos passageiros do veículo em razão de evento morte por acidente, sendo que o limite máximo de indenização por passageiro é previsto expressamente no rosto da apólice, destacando-se que o valor indicado é válido para cada passageiro que seja vítima do acidente.

Outra diferenciação se dá também pelo fato de que a cobertura APP se destina apenas às vítimas que sejam passageiras ou o condutor do automóvel sinistrado, não valendo a terceiros, que usualmente, nas apólices, são cobertos pelas coberturas de responsabilidade civil facultativa (RCF). Os critérios adotados para casos de indenização são previstos especificamente pelas seguradoras e devem ser claramente estipulados nas condições contratuais.

Porém, possui natureza semelhante ao DPVAT, na medida em que é prevista em contratos de seguro de responsabilidade civil de automóveis, ainda que obedeça ao disposto nas normas dos artigos 789 a 802 do Código Civil, que tratam dos seguros de pessoas.

Da viabilidade de dedução da indenização por morte do seguro obrigatório DPVAT em relação à indenização por morte na cobertura de APP

Nos termos da Súmula 246 do STJ, temos que “o valor do seguro obrigatório deve ser deduzido da indenização judicialmente fixada”. Isso porque, em nosso ordenamento jurídico, vige o princípio indenitário nos contratos de seguros, em que a indenização securitária visa à recomposição do patrimônio do segurado, nunca ao seu enriquecimento.

A indenização sempre objetiva o ressarcimento material da perda sofrida e não uma elevação da situação patrimonial dos autores, o que se daria se fosse possível a cumulação com a cobertura securitária contratada.

Assim, há que ser garantido o abatimento dos valores percebidos a título de 1º risco – seguro obrigatório. Os valores segurados para o ramo DPVAT devem ser abatidos de eventual condenação e o seguro feito pelo segurado, por sua vez, só começa a fluir a partir do esgotamento das verbas do obrigatório, conforme entendimento já sumulado pelo Superior Tribunal de Justiça.

Nesse sentido, temos o entendimento de que é viável o desconto do valor do DPVAT nas indenizações referentes à cobertura APP morte acidental. A jurisprudência dos tribunais já se manifestou nesse sentido:

Ementa: Apelação Cível. Responsabilidade Civil em Acidente de Trânsito. Tombamento de ônibus. Município de Canguçu. A responsabilidade dos entes estatais é objetiva, nos termos do art. 37, § 6º, da Constituição Federal, que consagra a Teoria do Risco Administrativo, somente podendo ser elidida quando comprovada culpa exclusiva da vítima, caso fortuito ou força maior, o que não ocorreu no caso em tela. A indenização securitária recebida pelos autores pela morte da passageira, sob a rubrica APP, constante na apólice, engloba as despesas com o funeral da vítima. É devido pensionamento aos autores, cuja dependência econômica em relação à vítima é presumida. O valor da pensão mensal deve observar a remuneração percebida pela vítima quando ocorreu o acidente, deduzido 1/3 de seus gastos pessoais. O termo final do pensionamento, quanto ao ex-companheiro, é a data em que a vítima completaria 72 anos, conforme postulado na exordial, e, quanto aos filhos, a data em que completarem 25 anos. É devida indenização pelos danos morais advindos da perda repentina e precoce do ente querido, companheira e mãe dos autores. Quantum fixado na sentença mantido, considerando as peculiaridades da lide e os precedentes desta Câmara Cível. Correção monetária e juros moratórios na forma do art. 1º-F da Lei 9.494/97. De acordo com o art. 3º da Lei nº 6.194/74, é possível a dedução do DPVAT da condenação. Apelação parcialmente provida. Sentença parcialmente modificada em reexame necessário. (Apelação Cível, nº 70072691702, Décima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Roberto Imperatore de Assis Brasil, julgado em: 13-09-2017)

Ementa: Apelações Cívis, agravo retido e reexame necessário. Ação indenizatória. Acidente de trânsito. Procedência na origem. Insurgência de todas as partes. Agravo retido. Art. 523, § 1º do CPC/73. Ausência de pedido expresso para análise nas razões ou na resposta da apelação. Recurso não conhecido. Pontos em comum entre os recursos e o reexame necessário. Autora que é arremessada para fora do veículo do município de Araquari, em razão de um capotamento, no caminho de volta da quimioterapia que realizava em Curitiba/Paraná. Condutor, que sob forte chuva e com velocidade acima da permitida, procede curva perigosa e ocasiona o infausto. Perda de membro inferior em razão do acidente. Morte da autora, em razão de câncer, no curso da demanda. Transmissibilidade dos danos morais e estéticos. Possibilidade. Precedentes nesta corte. Responsabilidade civil objetiva reconhecida. Comprovados a conduta, o dano e o nexo causal. Dano moral. Abalo anímico capaz de ensejar o direito à reparação pecuniária. Dano estético. Alteração morfológica da autora em razão da amputação de membro inferior. Indenização devida. Recurso de apelação do município. Pensão. Autora que detinha qualificação “do lar”. Trabalho doméstico que possui mensuração econômica. Perícia judicial que reconhece a incapacidade da autora em realizar as atividades comuns relacionadas ao lar, em razão do acidente. Pensão devida desde a data do sinistro até seu óbito. Paradigma em razão da ausência de renda. Salário-mínimo. Dano material. Documentos fiscais e recibos de prestações de serviços médicos contemporâneos à data do acidente. Despesas comprovadas. Ressarcimento devido. Recurso conhecido e desprovido. Recurso de apelação dos herdeiros da de cujus. Majoração dos valores fixados a título de danos morais e estéticos. Inviabilidade. Quantum que se mostra firme a responder aos malefícios advindos do acidente. Precedentes nesta corte. Índice de correção monetária. Pretensão de aplicação do INPC em vez do IPC-A. Viabilidade. Exegese do Provimento n. 13/95 da Corregedoria-Geral de Justiça. Juros e correção monetária sobre o valor do capital segurado. Termo inicial de incidência da correção monetária conta-se a partir da contratação do seguro. Recurso parcialmente provido no ponto. Juros de mora. Incidência a partir da citação. Majoração da verba honorária. Pretensão refutada. Manutenção do importe de 10% sobre o valor da condenação. Recurso conhecido e parcialmente provido. Recurso de apelação da seguradora. Preliminar de recurso prematuro por parte dos herdeiros. Pretensão rechaçada. Delimitação da cobertura de acidentes pessoais de passageiros (APP). Viabilidade. Contratação expressa no sentido de que a indenização, por passageiro, até o limite de cinco, será no importe de R$ 10.000,00 (dez mil reais). Precedentes na corte. Recurso provido no ponto. Condenação solidária até o limite da apólice. Transporte gratuito. Tese afastada. Efetiva prestação do direito à saúde, pelo município, que alberga a responsabilidade objetiva pelo dever de zelar pela integridade física da de cujus durante o transporte entre cidades. Dedução dos valores pagos pelo seguro DPVAT. Possibilidade em liquidação de sentença, desde que comprovado o pagamento. Recurso provido no ponto. Recurso conhecido e parcialmente provido. Reexame desprovido. (TJSC, Apelação Cível n. 0049191-47.2006.8.24.0038, de Joinville, rel. Artur Jenichen Filho, Quinta Câmara de Direito Público, j. 12-12-2019).

Todavia, no caso em análise, temos que diversos beneficiários do Seguro DPVAT não estão recebendo as indenizações pela Caixa Econômica Federal, por alegada insuficiência de fundos. Isso interfere na possibilidade de dedução de valores do seguro obrigatório?

Analisando a jurisprudência do STJ, temos que a dedução determinada pela Súmula 246 dispensa a comprovação de seu recebimento ou mesmo de seu requerimento, conforme julgamento no EREsp 1.191.598/DF. Vejamos:

Embargos de divergência em recurso especial. Civil. Responsabilidade civil. Acidente de trânsito. Pensão mensal. Fixação pelo julgador. Valor de referência salário mínimo. Possibilidade. Vedação de indexação. Conversão em valores líquidos à data do vencimento e, a partir de então, com incidência de correção monetária. DPVAT. Dedução da indenização fixada judicialmente. Comprovação do recebimento ou do requerimento administrativo. Dispensável. Embargos de divergência providos.

  1. O julgador pode fixar o valor da pensão mensal tomando como referência o valor do salário mínimo. Contudo, não é devida a indexação do valor da indenização, arbitrando-a com base no salário mínimo com a incidência concomitante de atualização monetária, sem que haja sua conversão em valores líquidos.
    2. As parcelas de pensão fixadas em salário mínimo devem ser convertidas em valores líquidos à data do vencimento e, a partir de então, atualizadas monetariamente.
    3. A interpretação a ser dada à Súmula 246/STJ é no sentido de que a dedução do valor do seguro obrigatório da indenização judicialmente fixada dispensa a comprovação de seu recebimento ou mesmo de seu requerimento.
    4. Embargos de divergência providos para dar parcial provimento ao recurso especial em maior extensão.
    (EREsp n. 1.191.598/DF, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Segunda Seção, julgado em 26/4/2017, DJe de 3/5/2017.) (grifos nossos)

Isso porque, conforme abordado pelo STJ, “a referida dedução se impõe como medida necessária para impedir eventual enriquecimento sem causa da seguradora, haja vista que o autor da ação indenizatória detém o direito subjetivo de postular o recebimento do seguro DPVAT, nos termos do art. 3º da Lei nº 6.194/1974”.

E considerando que a jurisprudência fixada pelo STJ dispensa a comprovação do seu recebimento, ou até mesmo de seu requerimento, a conclusão a ser adotada é de que seria viável a dedução de valores sobre eventual indenização a ser paga pela cobertura de APP – Morte Acidental, caso se concluísse que a Caixa não está pagando momentaneamente por insuficiência de fundos, visto que não haveria como se concluir que o pagamento jamais seria realizado. Assim, ainda que o beneficiário do seguro obrigatório ainda não tivesse recebido valores, pode vir a receber futuramente.

Todavia, considerando que: i) a obrigatoriedade do seguro obrigatório DPVAT foi extinta no governo anterior, ainda em 2019; ii) que o governo atual inicialmente planejou seu retorno através da criação de um novo seguro obrigatório, chamado SPVAT, mas acabou por desistir do planejamento; iii) que atualmente todas as leis que viriam a reger o seguro DPVAT ou SPVAT se encontram revogadas (Lei 6.194/74 e Lcp 207/24); e iv) que não há qualquer previsão de retorno do pagamento do seguro obrigatório DPVAT por acidentes de trânsito ocorridos após após 14/11/2023 pela Caixa Econômica Federal, é de se concluir que não há qualquer segurança de que a Caixa voltará a pagar as indenizações decorrentes do seguro obrigatório.

Diante do exposto, a conclusão adotada é:

É viável a dedução de valores do seguro obrigatório DPVAT em eventual indenização da cobertura APP – Morte Acidental, desde que ocorridas anteriormente a 14/11/2023;

Para eventos ocorridos após 14/11/2023, considerando que não há qualquer previsão de pagamento do seguro obrigatório pela Caixa Econômica Federal, sugere-se não prosseguir com a dedução de valores, ante a notória insegurança quanto a uma previsão de retorno do pagamento de indenizações do seguro obrigatório DPVAT.

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